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Mostrando postagens de 2006

Conto natalino

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Penso na coincidência de estar lendo, nesses dias de festa, os dois livros que estou lendo. A coincidência não é dessas preparadas pelo subconciente, porque não escolhi ler os dois justo nessa época. Um, Memórias Inventadas - A Segunda Infância, de Manoel de Barros, eu ganhei de um grande amigo, de despedida. O outro, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, eu comprei há muitos meses, e como minha leitura é lenta, vem se arrastando desde então. Não acho, também, que se trate de um milagre natalino, obra de algum elfo ou de Santa - isso pareceria filme da Sessão da Tarde. Acho que foi só eu ter enxergado essa, uma das infinitas ligações possíveis entre um livro e o outro e o natal. E se deu a coincidência. Como disse, a leitura do Evangelho é lenta. Parece que consulto o livro. Entre épocas cheias de afazeres, ou nas quais escolho outro lazer para chamar o sono, de vez em quando o leio. Vão, em média, quatro páginas por noite, da edição de bolso que tenho. Nessa toada, o Me

Uma explicação que eu devia

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Ruderal. [Do Lat. rudere , 'escombros', + -al ]. Adj. 2 g. Ecol. Veg . Diz-se da planta que habita as cercanias das construções humanas: ruas, terrenos baldios, ruinas, etc. [Como tal ambiente, em geral, é relativamente rico em proteínas, as plantas ruderais são nitrófilas.] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa "As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber. A gente inventou um truque para fabricar brinquedos com palavras. O truque era só virar bocó. Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol... (...)" Manoel de Barros, Livro Sobre Nada Muitos me perguntam o que é 'ruderal', se não é um adjetivo, e eu nunca expliquei a etimologia desse título 'No ruderal... lá no Pantanal'. O Aurélio explica 'ruderal' como acima. Uma vez meu pai disse que acha jeca isso de transformar adjetivos em substantivos nos títulos, coisa que foi moda há uns tempos atrá

Despedida III

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Os meninos nos chamaram, eu e a Lara: "Venham ver um bugio tomando banho". Largamos tudo, trenas, pranchetas, e fomos ver a festinha do macaco que fazia exatamente o que gostaríamos de fazer naquele fim de tarde quente. Na beira de um corpo d’água lamacento e quase seco estava o bugio. Nos aproximamos devagar para não espantá-lo. Estava bem esparramado, o bugio, e fechava os olhos como aqueles macacos japoneses se banhando nas águas termais na paisagem branca de gelo. Nos aproximamos um pouco mais. Ele abria os olhos devagar, nos mirando sem expressão, e tornava a fechá-los. Aquele macaco não se divertia. Não tinha expressão de alegre nem triste, mas estava cansado. Aquele bicho não estava bem. Rodeamos ele e vimos os machucados nos braços. Estava morrendo. O Sam saiu de perto e depois disse que não respeitamos o bicho. Mas não queríamos desrespeitá-lo. Sabíamos que estava estressado, por isso não nos aproximamos muito, nem mexemos com ele. Só observamos. E, Deus me perdoe,

Despedida II

Conheci um cara quando eu já sabia que viria morar no Mato Grosso do Sul. Em outro país, conversávamos sobre o Pantanal, e ele, que já havia morado aqui, contava como amava as mangas. "Aqui, se quiser chupar uma manga, você vai ao supermercado e encontra duas em uma bandeja de isopor, insossas, e te pedem por isso tantos soles. Lá as mangas eram tão doces, e tantas, que eu jogava futebol com elas". Comi amoras, acerolas e até goiabas que cresciam dentro das minhas parcelas, mas nunca mais me lembrei das mangas do Pantanal. Na minha última vez lá, trabalhávamos nuns capões e nossa água acabou. Fui encher os cantis numa fazenda próxima, que era a São Bento. Ainda antes da sede, na estrada mesmo, encontramos mangueiras tão carregadas, que nos sentimos como passarinhos atraídos pelas frutas. Eu chupei ali mesmo, ainda quentes, apanhadas do chão, as mangas derrubadas pelos príncipes-negros. Esses periquitos não sabem o bem que nos fazem ao cortar os cabinhos sem poder sustentar as

Despedida I

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A última vez em que estive no Pantanal, foi minha última vez lá. Quer dizer, foi minha última coleta. Talvez eu volte, se assim for planejado, mas para fazer o que eu fiz durante um ano e meio, foi a última vez. Me preparei: ficaria atenta a todos os sinais. Ficou parecendo que a natureza é que fez uma despedida para mim. Há muitos anos, quando eu acabara de entrar para a Biologia, ouvi um professor, que dizia ter morado algum tempo no Pantanal, descrever as chuvas de lá. Eram as chuvas mais lindas porque na planície se viam os quatro horizontes, o céu ficava escuro e, antes da água cair, havia tempestades de raios. O cheiro de terra molhada que conhecemos, não o conhecem fora do Brasil, porque é daqui o fungo do solo que produz esse cheiro nas chuvas. Até acho que ele não me falou do céu escuro, nem do cheiro da terra molhada, mas ao longo dos anos cultivei essa imagem e juntei a ela o som dos sapos nos brejos e poças d'água, o mugido distante de um boi na invernada, os anuns mol

Um sonho

Uma vez sonhei que tinha morrido. Eu ficava trançando no quintal da minha casa, debaixo da jabuticabeira, nos lugares que gostava de brincar, sem ninguém me ver, porque estavam na dimensão dos vivos. Eu tentava me comunicar através e cheiros, que eram sílabas. Eu fiz uma espécie de paleta, só que não era de cores, era de cheiros. Tinha cheiro de folha espremida, flor, terra vermelha, terra preta, terra molhada. Eu montava as palavras de cheiros e minha mãe começou a entender. Daí eu acordei.

Para um agradável passeio no campo

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É difícil compreender o que significa 'muitos mosquitos' quando não se conhece o Pantanal. Principalmente a região onde trabalho, o Pantanal do Miranda. E trabalhar entre pernilongos é um assunto á parte. Exige tecnologias. Exige repelente de pterodáctilos, já que nenhum dos comercializados espanta os merdinhas. Calça e camisa, não basta serem compridas. Deveriam ter poros que impedissem a penetração das probóscides, mas que fossem providos de bombas que permitissem a transpiração do pobre pesquisador no campo. Na falta, eu e minha equipe aprendemos com a prática que utilizar meia-calça sob a calça diminui a chance de dois poros se sobreporem, o que impede a passagem do aparelho bucal dos dípteros, com subsequente encontro da pele. As camisas devem ser duas, pelo menos: uma de mangas compridas, frouxa, sobre camiseta de malha. Ainda assim, os cotovelos, ombros e partes em que o tecido aderir à pele serão espoliados sem pudor. Para a cabeça, dispomos de um véu que, jogado sobre

Nymphaea amazonum

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De vez em quando saimos para passear à noite: eu, Marquinho (ele fala a língua das plantas), Sam (o homem das abelhas) e Lara, minha fiel escudeira (ela é Tomb Rider) - os personagens de todas as minhas histórias. Naquela noite, estava também Carlos, o gaúcho. Saímos para apreciar as estrelas, a Via Láctea estalada no céu, tentar a sorte de ver algum bicho, fazer a digestão do jantar. Evitando o inconveniente de botas molhadas e bocadas de jacarés, evitamos o atalho que estava alagado naquela cheia, fomos pela estrada de chão que circula a Base. Observamos peixinhos em intensa atividade nas bocas da manilha sob a estrada, que conectava dois brejos. Tomamos a malha de passarelas nas palafitas sobre os alagados, a ponte pênsil, as pontes rígidas. O alagado sob o Passo do Lontra fora encoberto por Lemna, dona da menor flor existente e de folhas também diminutas, que se propaga por fragmentação em quantidades tais, que forma densos tapetes flutuantes. Vimos os chapéus-de-couro, que emerge

Navegar, sem cessar

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"Como se entra no tal? Ouves o rumor do rio? É claro, Mestre. Essa é a porta." Conversa zen Os aguapés, chamados aqui de camalotes, descem o rio emaranhados, lentamente. Ao passar, conduzem os observadores a um estado meditativo em que só existe o barulho das águas e os camalotes, sem cessar, descendo o rio. Onde nascem e onde morrem, se irão emaranhar-se na galharia submersa ou juntar-se às macegas nas margens do rio, ou se chegarão ao seu destino, e se têm destino, quem é que sabe? Até onde encontrarão as boas condições e, chegando ao mar, se terão cumprido sua missão de sobreviver, se proliferar e dispersar, e se têm essa missão, é um mistério profundo. Mistério dos camalotes e do rio. O próprio rio não pára, nem à noite. Corre para ninguém ver, para platéia alguma. Outros bichos e plantas o visitam à noite, mas ainda que nenhum fosse, ainda que o mundo se tornasse um deserto de criaturas, o rio continuaria a correr, para ninguém.

As noites

No segundo mês de Pantanal, após o êxtase do primeiro contato, minha alegria já não beirava os 100%. Na verdade, andava bem lá pelos seus 50%. Se por um lado eu me deslumbrava com as praias e o rebuliço dos peixes nas curvas do rio Miranda, os ingás às suas margens, a variedade de aves e mamíferos como eu nunca havia visto, eu andava repetindo para mim: "No Pantanal, eu me sinto mal". Me comprazia perversamente com isso, pela rima besta e pela sacanagem com um dizer que rola em camisas e adesivos daqui: "No Pantanal a gente fica legal. Palavra de jacaré." Eu andava sobressaltada. De que eu tinha medo? Ah, de poucas coisas. Mas muito grandes coisas, que permeavam minha vida desde que sai da casa dos pais e me mudei para uma cidade inóspita, onde faria minha própria América. No Pantanal, depois do dia feliz nos brejos das flores de plantas aquáticas, cercada de garças e colhereiros, após os passeios alegres na caçamba da Toyota até os pontos de coleta, depois das refe

Anfíbios e répteis

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Répteis e anfíbios representam bem o brejo. Vivem e proliferam ali: jacarés, cágados, sucuris e sapos. São frios, medonhos, se arrastam - criaturas da lama, das águas turvas, das macegas de camalotes. São férteis e metamorfoseiam-se, numa lição de transformação e aperfeiçoamento - seres das águas puras, dos jardins de plantas aquáticas. Conforme se queira ver. Esses bichos fascinam e aterrorizaram o homem. Sua simbologia segue a da sua casa, o brejo (veja o post anterior). Seu valor muda conforme a cultura, seu nível de desenvolvimento e o momento histórico, sendo geralmente concebidos de forma negativa na cultura ocidental (principalmente na cultura cristã), e de forma positiva na cultura oriental. Basta lembrar o evento bíblico da tentação de Eva por uma serpente, que lhe oferece o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. E Deus amaldiçoa a serpente: “Porque fizeste isso, será maldita entre todos os animais e feras dos campos; andarás de rastos sobre o seu ventre e c

De trevas e luz: os brejos

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Eu trabalho no brejo e muito da minha percepção do Pantanal vem dali. O Pantanal é brejo na cheia e continua a ser na seca, naqueles reconditos onde as plantas aquáticas sempre vicejam, onde os jacarés repousam e os mosquitos proliferam. Os brejos de lama, das macegas dos camalotes, de estranhos bichos que se esgueiram no barro, as águas turvas. O domínio dos animais frios, anfíbios e répteis, da sucuri, da caiçaca e da boca-de-sapo. Mas é lá também que crescem os jardins de plantas aquáticas, das flores roxas dos camalotes, das brancas dos chapúes de couro, das pervincas perfumadas, das flores noturnas das ninféias. Das muitas formas de vida: as aquáticas livre-flutuantes, as flutuantes-enraizadas, as emergentes, as submersas, as que crescem sobre outras aquáticas, epífitas tão diferentes das que crescem sobre árvores. É no brejo que os animais buscam água na seca. E é lá que tudo se cria: alevinos, girinos, insetos. As aves nidificam entre as plantas do brejo. Uma espécie de sopa pri

O Capão da Onça

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Uma vez, terminei meu trabalho antes do previsto, ficando com uma manhã livre. Seu Geraldo já tinha me falado algumas vezes sobre o Capão da Onça, 'onde ela fica'. Não era muito longe da Base, dava para ir a pé. Ela mesma vivia fazendo este trajeto, tendo sido vista algumas vezes com dois filhotes sob as palafitas da Base. Era um dos muitos capões por ali, mas 'naquele a onça ia mesmo'. Levava pra lá os bichos que caçava e deixava montinhos de ossos brancos, reluzentes, de jacarés, macacos, queixadas e tal. "Você precisa ver as marcas nas árvores das garras dela, ela afia as unhas ali". Calçamos as botas de borracha, vestimos camisas de manga comprida e embrulhamos a cabeça em outra deixando apenas os olhos de fora, para escapar da fúria dos pernilongos, que com o início das cheias naquele novembro, estavam ouriçados. Depois de 20 minutos de caminhada chegamos ao Capão. Atravessando uma faixa de capim alto que se interpunha entre o campo e a mancha de árvores

Até o átomo

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Penso de novo no exercício de estranhamento (veja o post anterior) para os naturalistas do século XXI. Em um mundo demasiado conhecido, onde a ciência já dissecou seres vivos, o planeta, processos globais, onde a NatGeo, a Discovery e o Animal Planet nos mostram coisas do arco da velha no sofá das nossas casas, não há muito mais o que se conhecer. E a natureza lá fora parece entediante, muito lerda perto das tecnologias que se multiplicam em reação em cadeia. Não é. Mas é assim que pensamos. O mundo continua tão desconhecido quanto quando os primeiros naturalistas percorreram o planeta, contando para os habitantes do Velho Mundo sobre bestas, plantas magníficas, povos de pele vermelha e vergonhas mui saradas. Acho até que o mundo proessegue ainda mais desconhecido que naquela época. A exploração da natureza também é uma reação em cadeia. Cada paisagem, cada processo e cada organismo descrito é como uma janela que se abre para uma nova viagem, um universo que se expande nos detalhes, qu

Uma descrição e um exercício

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Na coleção das árvores habitadas por formigas, têm também as embaúbas, de nome Cecropia pachystachya. São árvores ocas de tronco dividido por nós, os quais são perfurados pelas formigas, que podem assim trafegar livremente na imensa galeria em seu interior. Na extremidade dos galhos, próximo à inserção das folhas, as formigas fazem buracos por onde passam á superfície externa da árvore. Próximo ficam os triquílio, estruturas aveludadas na base das folhas, que produzem corpúsculos ricos em óleos e glicogênio, dos quais as formigas se alimentam. Curiosa foi a forma da árvore cativar formigas. Para defenderem-se de animais herbívoros, era necessário que as formigas fossem carnívoras. Por isso as cecrópias desenvolveram ao longo dos tempos a capacidade de produzir corpúsculos de glicogênio, uma substância tipicamente produzida por animais. E de fato, as formigas não deixam barato para os invasores. Em experimentos colando-se cupins em cecrópias, é possível observar os ataques aos cupins re

Comitiva Esperança?

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O principal trabalho que desenvolvo no Pantanal - o que justifica minha vinda prá cá e que, se tudo correr bem, me dará um título de mestre em Ecologia, e que por isso justifica meus frios na barriga e noites sem dormir (e as alegrias também, muitas) - é sobre uma planta chamada Echinodorus paniculatus , o chapéu-de-couro-folha-fina. É uma aquática chamada de emergente por não ser submersa nem flutuante, mas enraizada no fundo de corpos dágua, ficando parte submersa e parte emersa nas cheias. Na primeira expedição, procurei populações vivendo nas condições adequadas para que fossem respondidas as pergunta do trabalho. E vou falar: mesmo sendo espécie comum, não foi fácil encontrar populações salvas da passagem de carros, mas acessíveis ao nosso carro, fora do alcance de pescadores e de ladrões das varinhas marcadoras das plantas, em densidades tais que eu não passaria dias medindo milhares de plantas em uma única população, nem que as dezeninhas desaparecessem de um mês para o outro, e

De Porcos e Macacos

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Na linha das feras que ameaçam os trabalhadores de campo estão os porcos do mato, descritos no post anterior. Dizem que se estiver no campo e o capim começar a dobrar, e você escutar as queixadas deles batendo (e a sua vai começar a bater junto, escuita), o único remédio é subir em uma árvore. Torça para que o tronco mais próximo não seja de uma palmeira bem lisa, ou espinhenta, porque será preciso ficar lá em cima até as feras debandarem. Sempre tive medo do encontro com estes uns, com uma vara de 50, 80 porcos. E tem gente que tripudia... Olha como o homem é macaco safado, mesmo: o motorista que me contou tudo isso, no final disse: "Quer ver esses bichos armarem uma confusão danada é você mijar na cabeça deles lá de cima".

Bestiário IV

No Pantanal existem três 'porcos do mato': os queixadas ( Tayassu pecari ), os caititus ( Pecari tajacu ), e o porco-monteiro. Este último é a forma feral, ou asselvajada do porco doméstico ( Sus scrofa ), trazido para a o Pantanal pelos colonizadores, no final do século XVIII, quando fundaram Corumbá. O bicho parece ser uma presa importante para as onças e, sem dúvida, o é para o homem. Está até envolvido numa questão de status entre os nativos, que é a seguinte: os porcos monteiros pequenos são capturados, capados e soltos. Crescem pelos campos, baías, capões e acurizais afora, até serem caçados para um churrasco. O caçador reconhece aquele que capou o bicho (e deixou sua marca no animal - uma sigla, um símbolo) como um bem-feitor, um que trabalhou para o bem comum.

O Rastro d'Ela

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Eu também tenho meus casos de onça. Acho que a vez em que estivemos mais próximas foi naquela noite em que fiquei sozinha na estrada de chão que liga a rodovia a Corumbá. Saimos, eu e alguns colegas, para trabalhar. Eles ficariam em um capão além do ponto onde me largaram. E eu percorreria a estrada com uma escada de pau, velha, remendada e pesada, parando sob cada embaúba no caminho para medir a taxa de patrulhamento por formigas. Eu reclamei cedo demais dos carros que passaram por mim perguntando o que eu fazia. "Contando formigas', eu respondia, e não era mentira. Sentiria falta dos viajantes amistosos mais tarde, quando a noite se fechou sem lua sobre a estrada, e cada carro era ameaçador, a a escuridão me tragou como uma formiguinha. Alguém me contava? Achava que sim, me sentindo sob os olhares de mil bestas do mato, enquanto palmilhava humilde a estrada de terra com a agora leve escadinha no ombro. Ficaram de me busca lá pelas seis. Mas se deu que às cinco o sol baixou,

Bestiário III

O Mão Fofa é a própria onça, com um tom fantasmagórico. Talvez tenha esse nome pelas patas fofas, com almofadas digitais; talvez pelo caminhar sorrateiro, imperceptível. O medo dos nativos de serem atacados por um ser que não se anuncia deve ter rendido tal denominação de tom sobrenatural.

Bestiário II

A onça é a rainha do Pantanal, mesmo. Não há criatura que desperte maior curiosidade, medo, admiração ou ódio. Nenhum assunto é tão presente nas rodas de tereré ou mesas de bar quanto os causos da pintada e da parda. Numa noite, bebíamos no buteco do Passo do Lontra. Na tv passava o Fantástico sobre o Pantanal paraguaio. Cada peão, pescador e piloteiro ali presente tinha um caso sobre a onça. E quando ela aparecia, era aquele "Oh!", "Olha essa pintada", "Mas é bonito, o bicho","Essa tá muito pequena, a que eu vi tinha a cabeçorra assim". Mesmo quem não viu uma, tem seus casos de criações atacadas, pegadas e esturros. Esturro é a vocalização "hu-hu-hu-hu-hu" da onça. Além de rugir como uma moto acelerando, ela esturra. 'A' onça. É uma entidade, mesmo.

Bestiário I

"Até os séculos XVI e XVII, os livros de história natural consistiam principalmente de bestiários e herbários ilustrados, quase todos uma mistura de mito, folclore e fato. Os herbários, sobretudo, eram pouco confiáveis, tratando em geral de hervas medicinais e, muitas vezes, de mágica. Nos bestiários, alguns animais reais tinham atributos extraordinários: acreditava-se, por exemplo, que o veado macho sugava serpentes dos seus buracos para comê-las. Quanto à doninha, podia ressucitar os próprios filhotes." Gerald Durrel in 'O Naturalista Amador' No pantanal vivem as criaturas ferozes, as dóceis, as exuberantes, as nunca vistas, as que curam, as que matam, as que trazem boa-sorte, as agourentas. As mil categorias de plantas, bichos e seres sobrenaturais. Têm as árvores que podem te deixar devidamente esfolado no tempo de uma soneca à sua sombra. São da espécie Triplaris americana - árvores inteiramente ôcas e habitadas por formigas, que só fazem agredir os possíveis he

Os Cinco Mandamentos do Coletor de Conchas

Eu coleciono conchas. Atividade difícil para biólogos porque, apesar de vermos as conchas mais lindas, as mais exóticas e as mais raras, nosso credencial para entrar nos locais onde ninguém vai exige que tenhamos a consciência que quase ninguém tem. Os mandamentos do biólogo coletor de conchas são: 1) Não coletarás para finalidades fúteis; 2) Não matarás para coletar; 3) Se já estiver morto (o molusco), não deixarás eremitas sem casa; 4) Não comprarás; 5) Se lhe forem dadas de presente, aceitarás. Mas não anunciarás que aceita de presente, fazendo uso dessa safadeza para aumentar sua coleção. De formas que eu procurava conchas para um amigo, que me pedira este favor para preparar sua aula de identificação de invertebrados. Logo de cara coletei Pomacea canaliculata e Pomacea escalaris, mas há dias não aparecia nenhuma novidade. "Pobres alunos", eu pensava enquanto remexia o fundo de um corpo d'água raso. "Vão identificar P. canaliculata , P. escalaris , P. canalicul

Pomo de Eva

Eu devia mesmo estar muito estimulada na minha primeira vez no Pantanal, porque não me lembro das minhas reações. Quem estava comigo depois me disse que eu fiquei meio abestalhada, parecendo criança, apontando tudo. Sem traumas: depois veria esta reação em várias outras pessoas, ou pior, nego chamando para-tudo de pau para tudo, pau-de-novato de pau do novato, e por aí afora. Andávamos sob as palafitas da base onde nos hospedamos, ao redor de uns alagados, onde procurávamos a planta que eu estudaria. E antes mesmo de encontrá-la, meu obejto de estudos e centro das minhas atenções, vi uma pomácea. Que grande era aquele caramujo, e que bonito, com suas faixas coloridas em espiral, brancas, cinzentas, amarronzadas. Era volumosa, com uma larga volta ocupando quase toda a concha, encerrando no topo com a pequena espiral concentrada. Deve ser por esse formato de maçã que são chamadas de pomáceas. Ou porque na verdade se parecem com seios de mulher. Minha coleção ganhou seis conhas das espéci

Never, never land

Cedo descobri que tem de tudo, aqui. É porque é mato muito selvagem e "Tudo que dizem que existe na mata, se não existe, já existiu", como falou Seu Anito, mateiro de outros matos, no sul da Bahia. Faz bem escutar os avisos e é aos poucos que se descobre sua utilidade. Conselhos são dados em tom de conversa fiada, quase passam desapercebidos. Ruim para você. É que certas coisas que deixariam qualquer cara-pálida de cabelo em pé são tão corriqueiras para os nativos que não merecem sobressalto. Da parte deles, certamente. "Cuidado com a onça", se cuide. "Nesse rio tem piranha", tem mesmo. "Não entre descalço, vai pisar em arraia", se calce. "Cuidado com abelha", e se cuide, sobretudo neste caso, porque mais que onça, piranha, arraia, jacaré e cobra, são elas as maiores responsáveis por mortes no Pantanal. O fato é que seguimos vivos. A maioria pelo menos. Em um ano me deparei com alguns desses animais, sei que muitas vezes estiveram próxi

Que ruderal?

Ah, o Pantanal. Vim parar aqui por motivos profissionais e pessoais. Acabara de me tornar bióloga. Estava á flor dos meus 24 nos e ávida pela experiência de morar fora da casa dos pais. Sou fã do Indiana Jones, já tive um cachorro com este nome. DuckTales também foi bom para mim. Queria viver algo que, contado, tivesse o glamour das expedições em busca das nascentes dos grandes rios, em meio às tribos canibais, mas que ao vivo, fosse sórdido, ah, mas sórdido. Aqui pisei, pela primeira vez, na seca. Mais tarde, descobriria que numa cheia das boas não teria encontrado chão para pisar. Primeiro minuto e 20 mosquitos de pelo menos quatro espécies enfiavam as probóscides nas minhas têmporas, enquanto eu, com as mão ocupadas com a bagagem, tentava em vão espantá-los soprando para cima. Imaginei que sorte de vírus e protozoários e namatóides tropicais se escondiam nos interstícios daqueles pântanos, ou na probóscide de pelo menos um entre 20 mosquitos. Aquela experiência começava a se esboçar