As noites

No segundo mês de Pantanal, após o êxtase do primeiro contato, minha alegria já não beirava os 100%. Na verdade, andava bem lá pelos seus 50%. Se por um lado eu me deslumbrava com as praias e o rebuliço dos peixes nas curvas do rio Miranda, os ingás às suas margens, a variedade de aves e mamíferos como eu nunca havia visto, eu andava repetindo para mim: "No Pantanal, eu me sinto mal". Me comprazia perversamente com isso, pela rima besta e pela sacanagem com um dizer que rola em camisas e adesivos daqui: "No Pantanal a gente fica legal. Palavra de jacaré."

Eu andava sobressaltada. De que eu tinha medo? Ah, de poucas coisas. Mas muito grandes coisas, que permeavam minha vida desde que sai da casa dos pais e me mudei para uma cidade inóspita, onde faria minha própria América. No Pantanal, depois do dia feliz nos brejos das flores de plantas aquáticas, cercada de garças e colhereiros, após os passeios alegres na caçamba da
Toyota até os pontos de coleta, depois das refeições e da divertida prosa com os companheiros, eu ficava sozinha no quarto. Além do telado da janela, havia o lá-fora, havia a noite, repleta de sapos, pios, bateres de asas, vocalizações indecifráveis de animais incultos (e talvez alguém de feições e intenções xucras espreitando meu quarto).

Eu deitava e meus medos voavam como espectros, para me assombrarem no teto sobre a cama, onde eu me estirava com sensações estranhas (dizem que quando sentimos o corpo cair, é porque estamos crescendo). Depois os espectros voavam pela janela, que, sem venezianas, estava sempre aberta. Aquela janela, eu queria tê-la fechado em muitas noites. Lá fora, meus medos se misturavam com a saparia, o pio do urutau, os gritos feios do carão, o vôo silencioso da coruja, as águas turvas, a lama dos brejos, as brenhas dos capões, onde rondava o mão-fofa. Era a noite pantaneira que atravessava a janela e invadia meu quarto?

Embalada pelos sons noturnos, eu imaginava se o Pantanal secaria, esturricando as plantas nas minhas parcelas, ou se encheria demais, submergindo minha dissertação. Estariam bem os meus pais? Saudades de quando viajávamos juntos, eles, meu irmão e eu. O que passa na cabeça dos que morrem? O que pensou meu avô na vez dele? Eu teria saudades demais de tudo aqui, não queria morrer! Saudade do chão da Serraria Souza Pinto, onde fui a tantas festas. Dos blocos grandes de granito, polidos, lustrosos. Da máquina do homem. O símbolo do progresso era um chão de granito encerado. Porque o homem mata outros seres vivos? Se eu morasse no Pantanal e uma cobra se aproximasse da minha casa eu a mataria? Uma vez vi matarem uma linda cobra
cipó, que nem venenosa é, porque rondava a casa do seu assassino – ele tinha três filhos pequenos. Por medo, para mostrar quem manda, para eliminar aquele símbolo de selvageria? Não sei. Quem é que sabe? A gente da cidade é capaz de entender o que sentem essas pessoas? Ele era uma pessoa boa, me sinto mal por pensar nele como um assassino. Afinal, morava no meio do mato, longe de recursos de transporte e de hospitais, tinha crianças, tinha ele mesmo.O que eu faria no lugar dele? Por que é que o homem mata outros seres vivos?

Daí eu dormia, e o dia amanhecia, e nada mais era como a noite. Esses sertões.

Comentários

Anônimo disse…
Nooossaaaaa!!!!
Estou pensativa ainda!!
Mas me senti um poco assim també quando fiquei trÊs meses no meio do mato, só que nos pampas gaúchos, onde fiz meu estágio...ficava só as vezes e essas coisas passavam pela minha cabeça, como, meu pai está bem!? E se tiver algo a espreita lá fora que eu não sei se terei forças, longe de todos que eu amo para comnbater, o que farei!?!?
Mas passa! A gente percebe que nossa mente é capaz de tudo para nos pôr à prova dos acontecimentos...para ver se somos capazes!
Mas passa, e percebemos que somos capazes de manter uma mínima sanidade para sobreviver a tempos ermos...

Se cuida!!
Amo-te um monte!
Saudades!!

Beijocas!!
Anônimo disse…
Uau! Puro Edgard Allan Poe.

"Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
'Uma visita', eu me disse, 'está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais'.
(...)
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais"
Anônimo disse…
Caraca maluco!
Se superando, hein?!
Sabe que senti dessas coisas nas noites que passei por lá... Aquela cama onde gostaria de ter passado menos tempo e então aproveitado mais, me fazia pensar e viajar nessas paradas. Eu pegava no sono curtindo o visual através apenas daquela tela, mas confesso que o que mais me ocorria era onde estaria o mão-fofa... E eu tentava ficar o máximo de tempo possível com os olhos bem abertos, esperando que o tal aparecesse... Num apareceu, mas eu ainda vejo um!
Muito maneiro Aninha.
Por um momento voltei a BEP.
Bjus pro cê,
Andri

Postagens mais visitadas deste blog

De trevas e luz: os brejos

Os Cinco Mandamentos do Coletor de Conchas

O Rastro d'Ela