Os Cinco Mandamentos do Coletor de Conchas
Eu coleciono conchas. Atividade difícil para biólogos porque, apesar de vermos as conchas mais lindas, as mais exóticas e as mais raras, nosso credencial para entrar nos locais onde ninguém vai exige que tenhamos a consciência que quase ninguém tem. Os mandamentos do biólogo coletor de conchas são:
1) Não coletarás para finalidades fúteis;
2) Não matarás para coletar;
3) Se já estiver morto (o molusco), não deixarás eremitas sem casa;
4) Não comprarás;
5) Se lhe forem dadas de presente, aceitarás. Mas não anunciarás que aceita de presente, fazendo uso dessa safadeza para aumentar sua coleção.
De formas que eu procurava conchas para um amigo, que me pedira este favor para preparar sua aula de identificação de invertebrados. Logo de cara coletei Pomacea canaliculata e Pomacea escalaris, mas há dias não aparecia nenhuma novidade. "Pobres alunos", eu pensava enquanto remexia o fundo de um corpo d'água raso. "Vão identificar P. canaliculata, P. escalaris, P. canaliculata, P. escalaris, P. canal...". Bingo. Uma belezinha emergiu do lodo. Uma Marisa. E, outra futucada, mais uma. Quando olhei ao redor, dezenas de conchas vazias. Estava sob o poleiro de um caramujeiro, um gavião que apanha as conchas com os pés em vôos rasantes sobre corpos d'água, e vai para seu poleiro comê-las, formando depósitos formidáveis de conchas, onde os biólogos vão se banquetear. Como eu pretendia fazer. Seis caramujos coletados em nome da ciência. E para minha coleção? Estava convencida de que meu motivo não era fútil. Eu não sacanearia os bichos, não os dispensaria, não os destruiria. Beleza, primeiro mandamento respeitado. Segundo mandamento, ok: todas as conchas vazias, ninguém morreria. Alguém ficaria sem casa? Ninguém, não existem eremitas no Pantanal até onde eu saiba. Fecha? Fechado!
Mas uma núvem ainda obnubilava a consciência: "E se eu comprometer algum processo desconhecido? Tantas coisas que ainda não foram estudadas... E a ciclagem de nutrientes? O cálcio dessa concha será usado em outra concha no futuro". Trevas. Venceu o cramulhãozinho, que me convenceu que uma concha sendo apanhada por uma macaca, não passa de uma interação ecológica.
The five commandments of the Shell collector
I collect shells. It is a difficult activity for biologists, because, although we find the most beautiful, exotic and rare shells, our access to places where no one else is allowed to go demands us the ecological conscience that few people have. The five commandments of the shell collecting biologist are:
1) You shall not collect for futile purposes;
2) You shall not kill to collect;
3) If the mollusk it already dead, you shall not leave eremites homeless;
4) You shall not buy shells;
5) If someone gives you shells as a gift, you can accept. But you shall not tell everybody that you will accept them as a gift, making use of this underhanded strategy to enlarge your collection.
I was looking for shells for my friend, who asked me this favor to prepare his invertebrate’s identification class. In the first day I collected Pomacea canaliculata and Pomacea escalaris, but, for some days, nothing new appeared. "Poor students", I thought while I sifted the bottom of a shallow lagoon. "They are going to identify P. canaliculata, P. escalaris, P. canaliculata, P. escalaris, P. canal...". Gotcha! Something beautiful emerged from the mud; A Marisa shell. Another sifting, one more shell. When I looked around, there were tens of empty shells. I was under the roost of a caramujeiro - a hawk that catch shells with its feet during its levelling flights over the lagoons, and then goes to its roost to eat them, forming formidable deposits of shells. To a Biologist it is like a grand banquet, and I was feasting! Six shells collected in the name of science. And what of my own collection? I was convinced that my motivation was not selfish. I would not disrespect the animals, nor throw them away, nor destroy them. Good, the first commandment was being respected. Second commandment, ok: all the shells were empty so no mollusk would die. Would somebody be homeless? No. To my knowledge there are no eremites in Pantanal. Decision made. Shells collected.
But a cloud was still fogging my conscience: "Would I compromise any unknown ecologic processes? There are so many things that have not been studied... What about the cycle of nutrients? Will the calcium in this shell be used in other shells in the future?”. Darkness. But the devil in my mind won, convincing me that a shell caught by a primate is nothing more than an ecological interaction.
David Locke edited the English version. Thank you one more time, Dave!
1) Não coletarás para finalidades fúteis;
2) Não matarás para coletar;
3) Se já estiver morto (o molusco), não deixarás eremitas sem casa;
4) Não comprarás;
5) Se lhe forem dadas de presente, aceitarás. Mas não anunciarás que aceita de presente, fazendo uso dessa safadeza para aumentar sua coleção.
De formas que eu procurava conchas para um amigo, que me pedira este favor para preparar sua aula de identificação de invertebrados. Logo de cara coletei Pomacea canaliculata e Pomacea escalaris, mas há dias não aparecia nenhuma novidade. "Pobres alunos", eu pensava enquanto remexia o fundo de um corpo d'água raso. "Vão identificar P. canaliculata, P. escalaris, P. canaliculata, P. escalaris, P. canal...". Bingo. Uma belezinha emergiu do lodo. Uma Marisa. E, outra futucada, mais uma. Quando olhei ao redor, dezenas de conchas vazias. Estava sob o poleiro de um caramujeiro, um gavião que apanha as conchas com os pés em vôos rasantes sobre corpos d'água, e vai para seu poleiro comê-las, formando depósitos formidáveis de conchas, onde os biólogos vão se banquetear. Como eu pretendia fazer. Seis caramujos coletados em nome da ciência. E para minha coleção? Estava convencida de que meu motivo não era fútil. Eu não sacanearia os bichos, não os dispensaria, não os destruiria. Beleza, primeiro mandamento respeitado. Segundo mandamento, ok: todas as conchas vazias, ninguém morreria. Alguém ficaria sem casa? Ninguém, não existem eremitas no Pantanal até onde eu saiba. Fecha? Fechado!
Mas uma núvem ainda obnubilava a consciência: "E se eu comprometer algum processo desconhecido? Tantas coisas que ainda não foram estudadas... E a ciclagem de nutrientes? O cálcio dessa concha será usado em outra concha no futuro". Trevas. Venceu o cramulhãozinho, que me convenceu que uma concha sendo apanhada por uma macaca, não passa de uma interação ecológica.
The five commandments of the Shell collector
I collect shells. It is a difficult activity for biologists, because, although we find the most beautiful, exotic and rare shells, our access to places where no one else is allowed to go demands us the ecological conscience that few people have. The five commandments of the shell collecting biologist are:
1) You shall not collect for futile purposes;
2) You shall not kill to collect;
3) If the mollusk it already dead, you shall not leave eremites homeless;
4) You shall not buy shells;
5) If someone gives you shells as a gift, you can accept. But you shall not tell everybody that you will accept them as a gift, making use of this underhanded strategy to enlarge your collection.
I was looking for shells for my friend, who asked me this favor to prepare his invertebrate’s identification class. In the first day I collected Pomacea canaliculata and Pomacea escalaris, but, for some days, nothing new appeared. "Poor students", I thought while I sifted the bottom of a shallow lagoon. "They are going to identify P. canaliculata, P. escalaris, P. canaliculata, P. escalaris, P. canal...". Gotcha! Something beautiful emerged from the mud; A Marisa shell. Another sifting, one more shell. When I looked around, there were tens of empty shells. I was under the roost of a caramujeiro - a hawk that catch shells with its feet during its levelling flights over the lagoons, and then goes to its roost to eat them, forming formidable deposits of shells. To a Biologist it is like a grand banquet, and I was feasting! Six shells collected in the name of science. And what of my own collection? I was convinced that my motivation was not selfish. I would not disrespect the animals, nor throw them away, nor destroy them. Good, the first commandment was being respected. Second commandment, ok: all the shells were empty so no mollusk would die. Would somebody be homeless? No. To my knowledge there are no eremites in Pantanal. Decision made. Shells collected.
But a cloud was still fogging my conscience: "Would I compromise any unknown ecologic processes? There are so many things that have not been studied... What about the cycle of nutrients? Will the calcium in this shell be used in other shells in the future?”. Darkness. But the devil in my mind won, convincing me that a shell caught by a primate is nothing more than an ecological interaction.
David Locke edited the English version. Thank you one more time, Dave!
Comentários
Aninha, você é demais!
Me diverte horrores, e seus escritos são ó-te-mos!!!! Você escreve super bem, de uma sensibilidade e fluidez...eehehehehehe
Adoro!
Mil beijocas!!
Demorou, heim?
Adorei!!!!
Beijos e saudades.
Esse é incrível! Parece que estou te vendo contar um causo... Hehe
Maneiríssimo!!!
Bejitos e saudade,
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Que bom que você gostou o meu blog, continue lendo e deixando recados. A gente se conhece?
Um abraço,
Ana