Uma explicação que eu devia



Ruderal. [Do Lat. rudere, 'escombros', + -al]. Adj. 2 g. Ecol. Veg. Diz-se da planta que habita as cercanias das construções humanas: ruas, terrenos baldios, ruinas, etc. [Como tal ambiente, em geral, é relativamente rico em proteínas, as plantas ruderais são nitrófilas.]

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa


"As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.
A gente inventou um truque para fabricar brinquedos com palavras.
O truque era só virar bocó. Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol... (...)"

Manoel de Barros, Livro Sobre Nada

Muitos me perguntam o que é 'ruderal', se não é um adjetivo, e eu nunca expliquei a etimologia desse título 'No ruderal... lá no Pantanal'.

O Aurélio explica 'ruderal' como acima.

Uma vez meu pai disse que acha jeca isso de transformar adjetivos em substantivos nos títulos, coisa que foi moda há uns tempos atrás nuns livrecos meia-boca.

Mas não foi nisso que pensei quando batizei esses textos. De certo que, como bióloga, tinha alguma noção do 'ruderal' do Aurélio. Mas a primeira vez que ouvi o termo bem empregado e repleto de significado (ainda que não fosse o do Aurélio), foi no Pantanal mesmo. Era minha primeira vez lá. Terminadas as obrigações do dia, o Sam convidou: "Vamos dar uma volta no ruderal?". E a palavra já veio cheia de sentido: tinha a citação do Pott, seu orientador, porque foi proferida com engraçado sotaque imitando o dele. E para nosso deleite, tinha algo de rude: de primitivo, rústico, inculto. Um passeio pelo mato, na intimidade da selva, onde acontecem seus segredos. Era tudo o que queríamos.

Daí, para sempre ruderal virou sinônimo de mato e cumplidade entre amigos, de alegria compartilhada. Tem a lembrança dos nossos preceptores. Une duas gerações dessa nossa família construída em várias partes do país, em muitos matos diferentes, de parentes que estão sempre chegando e partindo, outros solitários de utopias como as nossas. Nossa família bastarda e feliz.

No Pantanal tem um vô-de-todos-nós que é o Manoel de Barros. Em sua "Arte de infantilizar formigas" conta a poesia citada no início desse texto. Só parando agora para escrever é que vejo que outros pensaram no que fizemos. Vejam só, tem até quem explique a riqueza do nosso dessaber, nosso brinquedo com palavras. Temos até quem citar para falar de nós mesmos! Mas para a gente, ali na hora, foi só a alegria de depois do trabalho, a diversão no mato entre amigos.

(Lendo de novo a definição do Aurélio, vejo que estamos os três bem afinados: o ruderal (o Pantanal) são as cercanias das contruções humanas, um fim de lugar, lacuna de gente. Que grande equipe formamos! Modéstia à parte.)

Comentários

Anônimo disse…
Ana,

algo em sua escrita me lembra a forma despretensiosa, mas cheia de significados - a exemplo da própria palavra "ruderal - daqueles escritores que dizem muito de forma sintética; que são precisos sem ser frios, em suma.

É pra se guardar o trecho:
"Mas a primeira vez que ouvi o termo bem empregado e repleto de significado (ainda que não fosse o do Aurélio), foi no Pantanal mesmo. Era minha primeira vez lá. Terminadas as obrigações do dia, o Sam convidou: "Vamos dar uma volta no ruderal?". E a palavra já veio cheia de sentido: tinha a citação do Pott, seu orientador, porque foi proferida com engraçado sotaque imitando o dele. E para nosso deleite, tinha algo de rude: de primitivo, rústico, inculto. Um passeio pelo mato, na intimidade da selva, onde acontecem seus segredos. Era tudo o que queríamos."

Parabéns!
JP
Anônimo disse…
Queridam Anita!!!
Simplesmente lindo!
Acho que o momento em que esotu agora, de introspecção, favoreceu para dar um ar tranquilo ao ler suas palavras! Adorei muito!
Sinto saudades do Pantanal ruderal, ou ruderal Pantanal!!!

Mil beijocas saudosas!!!
Marilene Ribeiro disse…
Aninha, é na hora que a coisa aparece para a gente com um vento que demora só o suficiente para ser notado (e, então, vai-se) que nos sentimos compelidos a expressar essa experiência com palavras. Aquelas que vieram com ele, como brotando no ar, simples e...verdadeiro assim! Lindas as coisas que brotaram nos ventos mornos do mato Grosso!
Marilene.

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