Despedida I

A última vez em que estive no Pantanal, foi minha última vez lá. Quer dizer, foi minha última coleta. Talvez eu volte, se assim for planejado, mas para fazer o que eu fiz durante um ano e meio, foi a última vez.

Me preparei: ficaria atenta a todos os sinais. Ficou parecendo que a natureza é que fez uma despedida para mim.

Há muitos anos, quando eu acabara de entrar para a Biologia, ouvi um professor, que dizia ter morado algum tempo no Pantanal, descrever as chuvas de lá. Eram as chuvas mais lindas porque na planície se viam os quatro horizontes, o céu ficava escuro e, antes da água cair, havia tempestades de raios. O cheiro de terra molhada que conhecemos, não o conhecem fora do Brasil, porque é daqui o fungo do solo que produz esse cheiro nas chuvas. Até acho que ele não me falou do céu escuro, nem do cheiro da terra molhada, mas ao longo dos anos cultivei essa imagem e juntei a ela o som dos sapos nos brejos e poças d'água, o mugido distante de um boi na invernada, os anuns molhados sob um galho e aves negras voando muito alto no céu. Por muitos anos sonhei com essas chuvas e, dentre outras paisagens imaginadas, as chuvas na África, as noites no deserto, as tempestades na copa da hiléia.

Daí, passou o tempo e vim para o Pantanal. Presenciei chuvas aqui, poucas, e tão diferentes das imaginadas. Numa delas, pousavam os carcarás à beira do rio, com uma música de monocórdio na minha cabeça. Em outra, vi mesmo as aves negras voando muito alto, em espirais estranhas, como num prenúncio de fim do mundo. Estávamos na caçamba do caminhão e assistimos a tudo de dentro da chuva: a água a correr em lâmina sobre o solo, as poças a se encherem, as mangas verdes a caírem dos pés. A chuva ardia na cara e nos ombros.

Nessa minha última vez no Pantanal, todos os tempos que conheci lá se passaram em quatro dias, como em retrospectiva. Cheguei num fim da tarde com o céu escuro. Um vento de antes de chuva trazia a maresia dos brejos, cheiro de terra molhada e café, que Dona Odete passava. O Pantanal parecia uma fazenda e não o matagal inculto que conheci quando aqui cheguei pela primeira vez, com animais venenosos, pios estranhos e seres invisíveis. Já não era mais o lugar de me sentir sozinha. O Pantanal virou uma das minha casas.

Comentários

Unknown disse…
Aninha, com certeza você tem que escrever um livro!!!
Eu acho que todos nós que não crescemos no Pantanal criamos uma puta expectativa da nossa "primeira vez" no Pantanal, e com o passar do tempo cada ida é diferente, e a volta é legal (porque as experiências vividas são boas,nem sempre)porém também é triste porque voltamos.Eu penso se vou ver aquele pôr do sol lá da torre.
Mas você vai voltar pra ter o que escrever no teu livro.
Anônimo disse…
Por quê será que eu abro o berreiro sempre que leio seus textos? Ok, sou um manteiga derretida, já sei. E também já passei por algumas despedidas. Mas vai, não sofra com isto, tá? Você vai voltar pra casa! E o Pantanal não vai embora, nunca, se depender de você, certo?
Beijin,
j.
Anônimo disse…
É, o Pantanal não vai embora nunca, mesmo! Porque já faz parte da sua experiência e já está na memória corporal. Ninha, intuitivamente o Zen já te recebeu, e sem o saber, talvez, você faz a "fenomenologia pura" da vida natural... e isso é lindo!
bjs
Anônimo disse…
Aninha, não sei nem o que dizer... na verdade, nunca escrevi um comentáro no seu blog, mas empre o li. Não sei bem o que seus textos provocam em mim, uma mistura de saudade de você e uma vontade de conhecer o Pantanal como você aprendeu a conhecer, profundamente. É uma viagem por ecossistema brasileiro e pela sua vida aí. Beijão,
ana fá
Anônimo disse…
Carol,
Por acaso, agora é o Pantanal, mas estou certa de que você, em qualquer lugar que estiver, será capaz de ver a vida, a natureza, as pessoas, tudo e qualquer coisa de forma tão especial. Nada disto existiria não fosse sua sensibilidade. Não deixe nunca de escrever, nos contaminando assim com este seu olhar tão emocionado com a natureza.
Judite
Anônimo disse…
Anita!!
Linda descrição das chuvas...
Lembrei-me do dia em que estavamos na caçamba da toyota, no dia de reconhecimento e caiu aquela chuva doída, da solidariedade dos amigos em pegar chuva, porque amigo é amigo... e também do ótimo sabor e significado que a manga verde teve nesse dia!!
Bateu saudades imensas...imagino um pouco como você se sentiu!
E adorei te reencontrar!!
te amo um monte!!

Beijocas!!
Anônimo disse…
Simplesmente lindo!!
Bjo grande!!
Luísa
Anônimo disse…
Meus olhos estão marjados....
Passou um filme na minha cabeça com todas as paisagens, sons e cheiros do Pantanal.
Lindo!!! Parabéns Aninha!
Beijo,
Lica
Unknown disse…
Primeira vez q escrevo, mas não por ser a primeira q leio, pois o faço sempre...
sobre os textos, adoro!
sobre a despedida acho q ainda não estou pronta pra falar...
Bjos
Anônimo disse…
Que lindo Ana! Fechando os olhos consegui me transportar, com essa descrição tão rica. Meu grande sonho é conhecer essa terra maravilhosa. Bjo,
Ana Flávia
Anônimo disse…
Aninha, me encheu os olhos d'água!!!!
Lindo!!!! Me senti lá...
Nunca deixe esse blog viu, ainda mais agora que vai voltar pra casa...
bjo

Postagens mais visitadas deste blog

De trevas e luz: os brejos

Os Cinco Mandamentos do Coletor de Conchas

O Rastro d'Ela