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O Capão da Onça

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Uma vez, terminei meu trabalho antes do previsto, ficando com uma manhã livre. Seu Geraldo já tinha me falado algumas vezes sobre o Capão da Onça, 'onde ela fica'. Não era muito longe da Base, dava para ir a pé. Ela mesma vivia fazendo este trajeto, tendo sido vista algumas vezes com dois filhotes sob as palafitas da Base. Era um dos muitos capões por ali, mas 'naquele a onça ia mesmo'. Levava pra lá os bichos que caçava e deixava montinhos de ossos brancos, reluzentes, de jacarés, macacos, queixadas e tal. "Você precisa ver as marcas nas árvores das garras dela, ela afia as unhas ali". Calçamos as botas de borracha, vestimos camisas de manga comprida e embrulhamos a cabeça em outra deixando apenas os olhos de fora, para escapar da fúria dos pernilongos, que com o início das cheias naquele novembro, estavam ouriçados. Depois de 20 minutos de caminhada chegamos ao Capão. Atravessando uma faixa de capim alto que se interpunha entre o campo e a mancha de árvores ...

Até o átomo

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Penso de novo no exercício de estranhamento (veja o post anterior) para os naturalistas do século XXI. Em um mundo demasiado conhecido, onde a ciência já dissecou seres vivos, o planeta, processos globais, onde a NatGeo, a Discovery e o Animal Planet nos mostram coisas do arco da velha no sofá das nossas casas, não há muito mais o que se conhecer. E a natureza lá fora parece entediante, muito lerda perto das tecnologias que se multiplicam em reação em cadeia. Não é. Mas é assim que pensamos. O mundo continua tão desconhecido quanto quando os primeiros naturalistas percorreram o planeta, contando para os habitantes do Velho Mundo sobre bestas, plantas magníficas, povos de pele vermelha e vergonhas mui saradas. Acho até que o mundo proessegue ainda mais desconhecido que naquela época. A exploração da natureza também é uma reação em cadeia. Cada paisagem, cada processo e cada organismo descrito é como uma janela que se abre para uma nova viagem, um universo que se expande nos detalhes, qu...

Uma descrição e um exercício

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Na coleção das árvores habitadas por formigas, têm também as embaúbas, de nome Cecropia pachystachya. São árvores ocas de tronco dividido por nós, os quais são perfurados pelas formigas, que podem assim trafegar livremente na imensa galeria em seu interior. Na extremidade dos galhos, próximo à inserção das folhas, as formigas fazem buracos por onde passam á superfície externa da árvore. Próximo ficam os triquílio, estruturas aveludadas na base das folhas, que produzem corpúsculos ricos em óleos e glicogênio, dos quais as formigas se alimentam. Curiosa foi a forma da árvore cativar formigas. Para defenderem-se de animais herbívoros, era necessário que as formigas fossem carnívoras. Por isso as cecrópias desenvolveram ao longo dos tempos a capacidade de produzir corpúsculos de glicogênio, uma substância tipicamente produzida por animais. E de fato, as formigas não deixam barato para os invasores. Em experimentos colando-se cupins em cecrópias, é possível observar os ataques aos cupins re...

Comitiva Esperança?

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O principal trabalho que desenvolvo no Pantanal - o que justifica minha vinda prá cá e que, se tudo correr bem, me dará um título de mestre em Ecologia, e que por isso justifica meus frios na barriga e noites sem dormir (e as alegrias também, muitas) - é sobre uma planta chamada Echinodorus paniculatus , o chapéu-de-couro-folha-fina. É uma aquática chamada de emergente por não ser submersa nem flutuante, mas enraizada no fundo de corpos dágua, ficando parte submersa e parte emersa nas cheias. Na primeira expedição, procurei populações vivendo nas condições adequadas para que fossem respondidas as pergunta do trabalho. E vou falar: mesmo sendo espécie comum, não foi fácil encontrar populações salvas da passagem de carros, mas acessíveis ao nosso carro, fora do alcance de pescadores e de ladrões das varinhas marcadoras das plantas, em densidades tais que eu não passaria dias medindo milhares de plantas em uma única população, nem que as dezeninhas desaparecessem de um mês para o outro, e...

De Porcos e Macacos

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Na linha das feras que ameaçam os trabalhadores de campo estão os porcos do mato, descritos no post anterior. Dizem que se estiver no campo e o capim começar a dobrar, e você escutar as queixadas deles batendo (e a sua vai começar a bater junto, escuita), o único remédio é subir em uma árvore. Torça para que o tronco mais próximo não seja de uma palmeira bem lisa, ou espinhenta, porque será preciso ficar lá em cima até as feras debandarem. Sempre tive medo do encontro com estes uns, com uma vara de 50, 80 porcos. E tem gente que tripudia... Olha como o homem é macaco safado, mesmo: o motorista que me contou tudo isso, no final disse: "Quer ver esses bichos armarem uma confusão danada é você mijar na cabeça deles lá de cima".

Bestiário IV

No Pantanal existem três 'porcos do mato': os queixadas ( Tayassu pecari ), os caititus ( Pecari tajacu ), e o porco-monteiro. Este último é a forma feral, ou asselvajada do porco doméstico ( Sus scrofa ), trazido para a o Pantanal pelos colonizadores, no final do século XVIII, quando fundaram Corumbá. O bicho parece ser uma presa importante para as onças e, sem dúvida, o é para o homem. Está até envolvido numa questão de status entre os nativos, que é a seguinte: os porcos monteiros pequenos são capturados, capados e soltos. Crescem pelos campos, baías, capões e acurizais afora, até serem caçados para um churrasco. O caçador reconhece aquele que capou o bicho (e deixou sua marca no animal - uma sigla, um símbolo) como um bem-feitor, um que trabalhou para o bem comum.

O Rastro d'Ela

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Eu também tenho meus casos de onça. Acho que a vez em que estivemos mais próximas foi naquela noite em que fiquei sozinha na estrada de chão que liga a rodovia a Corumbá. Saimos, eu e alguns colegas, para trabalhar. Eles ficariam em um capão além do ponto onde me largaram. E eu percorreria a estrada com uma escada de pau, velha, remendada e pesada, parando sob cada embaúba no caminho para medir a taxa de patrulhamento por formigas. Eu reclamei cedo demais dos carros que passaram por mim perguntando o que eu fazia. "Contando formigas', eu respondia, e não era mentira. Sentiria falta dos viajantes amistosos mais tarde, quando a noite se fechou sem lua sobre a estrada, e cada carro era ameaçador, a a escuridão me tragou como uma formiguinha. Alguém me contava? Achava que sim, me sentindo sob os olhares de mil bestas do mato, enquanto palmilhava humilde a estrada de terra com a agora leve escadinha no ombro. Ficaram de me busca lá pelas seis. Mas se deu que às cinco o sol baixou, ...