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Mostrando postagens de maio, 2006

Comitiva Esperança?

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O principal trabalho que desenvolvo no Pantanal - o que justifica minha vinda prá cá e que, se tudo correr bem, me dará um título de mestre em Ecologia, e que por isso justifica meus frios na barriga e noites sem dormir (e as alegrias também, muitas) - é sobre uma planta chamada Echinodorus paniculatus , o chapéu-de-couro-folha-fina. É uma aquática chamada de emergente por não ser submersa nem flutuante, mas enraizada no fundo de corpos dágua, ficando parte submersa e parte emersa nas cheias. Na primeira expedição, procurei populações vivendo nas condições adequadas para que fossem respondidas as pergunta do trabalho. E vou falar: mesmo sendo espécie comum, não foi fácil encontrar populações salvas da passagem de carros, mas acessíveis ao nosso carro, fora do alcance de pescadores e de ladrões das varinhas marcadoras das plantas, em densidades tais que eu não passaria dias medindo milhares de plantas em uma única população, nem que as dezeninhas desaparecessem de um mês para o outro, e

De Porcos e Macacos

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Na linha das feras que ameaçam os trabalhadores de campo estão os porcos do mato, descritos no post anterior. Dizem que se estiver no campo e o capim começar a dobrar, e você escutar as queixadas deles batendo (e a sua vai começar a bater junto, escuita), o único remédio é subir em uma árvore. Torça para que o tronco mais próximo não seja de uma palmeira bem lisa, ou espinhenta, porque será preciso ficar lá em cima até as feras debandarem. Sempre tive medo do encontro com estes uns, com uma vara de 50, 80 porcos. E tem gente que tripudia... Olha como o homem é macaco safado, mesmo: o motorista que me contou tudo isso, no final disse: "Quer ver esses bichos armarem uma confusão danada é você mijar na cabeça deles lá de cima".

Bestiário IV

No Pantanal existem três 'porcos do mato': os queixadas ( Tayassu pecari ), os caititus ( Pecari tajacu ), e o porco-monteiro. Este último é a forma feral, ou asselvajada do porco doméstico ( Sus scrofa ), trazido para a o Pantanal pelos colonizadores, no final do século XVIII, quando fundaram Corumbá. O bicho parece ser uma presa importante para as onças e, sem dúvida, o é para o homem. Está até envolvido numa questão de status entre os nativos, que é a seguinte: os porcos monteiros pequenos são capturados, capados e soltos. Crescem pelos campos, baías, capões e acurizais afora, até serem caçados para um churrasco. O caçador reconhece aquele que capou o bicho (e deixou sua marca no animal - uma sigla, um símbolo) como um bem-feitor, um que trabalhou para o bem comum.

O Rastro d'Ela

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Eu também tenho meus casos de onça. Acho que a vez em que estivemos mais próximas foi naquela noite em que fiquei sozinha na estrada de chão que liga a rodovia a Corumbá. Saimos, eu e alguns colegas, para trabalhar. Eles ficariam em um capão além do ponto onde me largaram. E eu percorreria a estrada com uma escada de pau, velha, remendada e pesada, parando sob cada embaúba no caminho para medir a taxa de patrulhamento por formigas. Eu reclamei cedo demais dos carros que passaram por mim perguntando o que eu fazia. "Contando formigas', eu respondia, e não era mentira. Sentiria falta dos viajantes amistosos mais tarde, quando a noite se fechou sem lua sobre a estrada, e cada carro era ameaçador, a a escuridão me tragou como uma formiguinha. Alguém me contava? Achava que sim, me sentindo sob os olhares de mil bestas do mato, enquanto palmilhava humilde a estrada de terra com a agora leve escadinha no ombro. Ficaram de me busca lá pelas seis. Mas se deu que às cinco o sol baixou,

Bestiário III

O Mão Fofa é a própria onça, com um tom fantasmagórico. Talvez tenha esse nome pelas patas fofas, com almofadas digitais; talvez pelo caminhar sorrateiro, imperceptível. O medo dos nativos de serem atacados por um ser que não se anuncia deve ter rendido tal denominação de tom sobrenatural.

Bestiário II

A onça é a rainha do Pantanal, mesmo. Não há criatura que desperte maior curiosidade, medo, admiração ou ódio. Nenhum assunto é tão presente nas rodas de tereré ou mesas de bar quanto os causos da pintada e da parda. Numa noite, bebíamos no buteco do Passo do Lontra. Na tv passava o Fantástico sobre o Pantanal paraguaio. Cada peão, pescador e piloteiro ali presente tinha um caso sobre a onça. E quando ela aparecia, era aquele "Oh!", "Olha essa pintada", "Mas é bonito, o bicho","Essa tá muito pequena, a que eu vi tinha a cabeçorra assim". Mesmo quem não viu uma, tem seus casos de criações atacadas, pegadas e esturros. Esturro é a vocalização "hu-hu-hu-hu-hu" da onça. Além de rugir como uma moto acelerando, ela esturra. 'A' onça. É uma entidade, mesmo.

Bestiário I

"Até os séculos XVI e XVII, os livros de história natural consistiam principalmente de bestiários e herbários ilustrados, quase todos uma mistura de mito, folclore e fato. Os herbários, sobretudo, eram pouco confiáveis, tratando em geral de hervas medicinais e, muitas vezes, de mágica. Nos bestiários, alguns animais reais tinham atributos extraordinários: acreditava-se, por exemplo, que o veado macho sugava serpentes dos seus buracos para comê-las. Quanto à doninha, podia ressucitar os próprios filhotes." Gerald Durrel in 'O Naturalista Amador' No pantanal vivem as criaturas ferozes, as dóceis, as exuberantes, as nunca vistas, as que curam, as que matam, as que trazem boa-sorte, as agourentas. As mil categorias de plantas, bichos e seres sobrenaturais. Têm as árvores que podem te deixar devidamente esfolado no tempo de uma soneca à sua sombra. São da espécie Triplaris americana - árvores inteiramente ôcas e habitadas por formigas, que só fazem agredir os possíveis he

Os Cinco Mandamentos do Coletor de Conchas

Eu coleciono conchas. Atividade difícil para biólogos porque, apesar de vermos as conchas mais lindas, as mais exóticas e as mais raras, nosso credencial para entrar nos locais onde ninguém vai exige que tenhamos a consciência que quase ninguém tem. Os mandamentos do biólogo coletor de conchas são: 1) Não coletarás para finalidades fúteis; 2) Não matarás para coletar; 3) Se já estiver morto (o molusco), não deixarás eremitas sem casa; 4) Não comprarás; 5) Se lhe forem dadas de presente, aceitarás. Mas não anunciarás que aceita de presente, fazendo uso dessa safadeza para aumentar sua coleção. De formas que eu procurava conchas para um amigo, que me pedira este favor para preparar sua aula de identificação de invertebrados. Logo de cara coletei Pomacea canaliculata e Pomacea escalaris, mas há dias não aparecia nenhuma novidade. "Pobres alunos", eu pensava enquanto remexia o fundo de um corpo d'água raso. "Vão identificar P. canaliculata , P. escalaris , P. canalicul

Pomo de Eva

Eu devia mesmo estar muito estimulada na minha primeira vez no Pantanal, porque não me lembro das minhas reações. Quem estava comigo depois me disse que eu fiquei meio abestalhada, parecendo criança, apontando tudo. Sem traumas: depois veria esta reação em várias outras pessoas, ou pior, nego chamando para-tudo de pau para tudo, pau-de-novato de pau do novato, e por aí afora. Andávamos sob as palafitas da base onde nos hospedamos, ao redor de uns alagados, onde procurávamos a planta que eu estudaria. E antes mesmo de encontrá-la, meu obejto de estudos e centro das minhas atenções, vi uma pomácea. Que grande era aquele caramujo, e que bonito, com suas faixas coloridas em espiral, brancas, cinzentas, amarronzadas. Era volumosa, com uma larga volta ocupando quase toda a concha, encerrando no topo com a pequena espiral concentrada. Deve ser por esse formato de maçã que são chamadas de pomáceas. Ou porque na verdade se parecem com seios de mulher. Minha coleção ganhou seis conhas das espéci

Never, never land

Cedo descobri que tem de tudo, aqui. É porque é mato muito selvagem e "Tudo que dizem que existe na mata, se não existe, já existiu", como falou Seu Anito, mateiro de outros matos, no sul da Bahia. Faz bem escutar os avisos e é aos poucos que se descobre sua utilidade. Conselhos são dados em tom de conversa fiada, quase passam desapercebidos. Ruim para você. É que certas coisas que deixariam qualquer cara-pálida de cabelo em pé são tão corriqueiras para os nativos que não merecem sobressalto. Da parte deles, certamente. "Cuidado com a onça", se cuide. "Nesse rio tem piranha", tem mesmo. "Não entre descalço, vai pisar em arraia", se calce. "Cuidado com abelha", e se cuide, sobretudo neste caso, porque mais que onça, piranha, arraia, jacaré e cobra, são elas as maiores responsáveis por mortes no Pantanal. O fato é que seguimos vivos. A maioria pelo menos. Em um ano me deparei com alguns desses animais, sei que muitas vezes estiveram próxi

Que ruderal?

Ah, o Pantanal. Vim parar aqui por motivos profissionais e pessoais. Acabara de me tornar bióloga. Estava á flor dos meus 24 nos e ávida pela experiência de morar fora da casa dos pais. Sou fã do Indiana Jones, já tive um cachorro com este nome. DuckTales também foi bom para mim. Queria viver algo que, contado, tivesse o glamour das expedições em busca das nascentes dos grandes rios, em meio às tribos canibais, mas que ao vivo, fosse sórdido, ah, mas sórdido. Aqui pisei, pela primeira vez, na seca. Mais tarde, descobriria que numa cheia das boas não teria encontrado chão para pisar. Primeiro minuto e 20 mosquitos de pelo menos quatro espécies enfiavam as probóscides nas minhas têmporas, enquanto eu, com as mão ocupadas com a bagagem, tentava em vão espantá-los soprando para cima. Imaginei que sorte de vírus e protozoários e namatóides tropicais se escondiam nos interstícios daqueles pântanos, ou na probóscide de pelo menos um entre 20 mosquitos. Aquela experiência começava a se esboçar