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Despedida III

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Os meninos nos chamaram, eu e a Lara: "Venham ver um bugio tomando banho". Largamos tudo, trenas, pranchetas, e fomos ver a festinha do macaco que fazia exatamente o que gostaríamos de fazer naquele fim de tarde quente. Na beira de um corpo d’água lamacento e quase seco estava o bugio. Nos aproximamos devagar para não espantá-lo. Estava bem esparramado, o bugio, e fechava os olhos como aqueles macacos japoneses se banhando nas águas termais na paisagem branca de gelo. Nos aproximamos um pouco mais. Ele abria os olhos devagar, nos mirando sem expressão, e tornava a fechá-los. Aquele macaco não se divertia. Não tinha expressão de alegre nem triste, mas estava cansado. Aquele bicho não estava bem. Rodeamos ele e vimos os machucados nos braços. Estava morrendo. O Sam saiu de perto e depois disse que não respeitamos o bicho. Mas não queríamos desrespeitá-lo. Sabíamos que estava estressado, por isso não nos aproximamos muito, nem mexemos com ele. Só observamos. E, Deus me perdoe, ...

Despedida II

Conheci um cara quando eu já sabia que viria morar no Mato Grosso do Sul. Em outro país, conversávamos sobre o Pantanal, e ele, que já havia morado aqui, contava como amava as mangas. "Aqui, se quiser chupar uma manga, você vai ao supermercado e encontra duas em uma bandeja de isopor, insossas, e te pedem por isso tantos soles. Lá as mangas eram tão doces, e tantas, que eu jogava futebol com elas". Comi amoras, acerolas e até goiabas que cresciam dentro das minhas parcelas, mas nunca mais me lembrei das mangas do Pantanal. Na minha última vez lá, trabalhávamos nuns capões e nossa água acabou. Fui encher os cantis numa fazenda próxima, que era a São Bento. Ainda antes da sede, na estrada mesmo, encontramos mangueiras tão carregadas, que nos sentimos como passarinhos atraídos pelas frutas. Eu chupei ali mesmo, ainda quentes, apanhadas do chão, as mangas derrubadas pelos príncipes-negros. Esses periquitos não sabem o bem que nos fazem ao cortar os cabinhos sem poder sustentar as...

Despedida I

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A última vez em que estive no Pantanal, foi minha última vez lá. Quer dizer, foi minha última coleta. Talvez eu volte, se assim for planejado, mas para fazer o que eu fiz durante um ano e meio, foi a última vez. Me preparei: ficaria atenta a todos os sinais. Ficou parecendo que a natureza é que fez uma despedida para mim. Há muitos anos, quando eu acabara de entrar para a Biologia, ouvi um professor, que dizia ter morado algum tempo no Pantanal, descrever as chuvas de lá. Eram as chuvas mais lindas porque na planície se viam os quatro horizontes, o céu ficava escuro e, antes da água cair, havia tempestades de raios. O cheiro de terra molhada que conhecemos, não o conhecem fora do Brasil, porque é daqui o fungo do solo que produz esse cheiro nas chuvas. Até acho que ele não me falou do céu escuro, nem do cheiro da terra molhada, mas ao longo dos anos cultivei essa imagem e juntei a ela o som dos sapos nos brejos e poças d'água, o mugido distante de um boi na invernada, os anuns mol...

Um sonho

Uma vez sonhei que tinha morrido. Eu ficava trançando no quintal da minha casa, debaixo da jabuticabeira, nos lugares que gostava de brincar, sem ninguém me ver, porque estavam na dimensão dos vivos. Eu tentava me comunicar através e cheiros, que eram sílabas. Eu fiz uma espécie de paleta, só que não era de cores, era de cheiros. Tinha cheiro de folha espremida, flor, terra vermelha, terra preta, terra molhada. Eu montava as palavras de cheiros e minha mãe começou a entender. Daí eu acordei.

Para um agradável passeio no campo

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É difícil compreender o que significa 'muitos mosquitos' quando não se conhece o Pantanal. Principalmente a região onde trabalho, o Pantanal do Miranda. E trabalhar entre pernilongos é um assunto á parte. Exige tecnologias. Exige repelente de pterodáctilos, já que nenhum dos comercializados espanta os merdinhas. Calça e camisa, não basta serem compridas. Deveriam ter poros que impedissem a penetração das probóscides, mas que fossem providos de bombas que permitissem a transpiração do pobre pesquisador no campo. Na falta, eu e minha equipe aprendemos com a prática que utilizar meia-calça sob a calça diminui a chance de dois poros se sobreporem, o que impede a passagem do aparelho bucal dos dípteros, com subsequente encontro da pele. As camisas devem ser duas, pelo menos: uma de mangas compridas, frouxa, sobre camiseta de malha. Ainda assim, os cotovelos, ombros e partes em que o tecido aderir à pele serão espoliados sem pudor. Para a cabeça, dispomos de um véu que, jogado sobre...

Nymphaea amazonum

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De vez em quando saimos para passear à noite: eu, Marquinho (ele fala a língua das plantas), Sam (o homem das abelhas) e Lara, minha fiel escudeira (ela é Tomb Rider) - os personagens de todas as minhas histórias. Naquela noite, estava também Carlos, o gaúcho. Saímos para apreciar as estrelas, a Via Láctea estalada no céu, tentar a sorte de ver algum bicho, fazer a digestão do jantar. Evitando o inconveniente de botas molhadas e bocadas de jacarés, evitamos o atalho que estava alagado naquela cheia, fomos pela estrada de chão que circula a Base. Observamos peixinhos em intensa atividade nas bocas da manilha sob a estrada, que conectava dois brejos. Tomamos a malha de passarelas nas palafitas sobre os alagados, a ponte pênsil, as pontes rígidas. O alagado sob o Passo do Lontra fora encoberto por Lemna, dona da menor flor existente e de folhas também diminutas, que se propaga por fragmentação em quantidades tais, que forma densos tapetes flutuantes. Vimos os chapéus-de-couro, que emerge...

Navegar, sem cessar

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"Como se entra no tal? Ouves o rumor do rio? É claro, Mestre. Essa é a porta." Conversa zen Os aguapés, chamados aqui de camalotes, descem o rio emaranhados, lentamente. Ao passar, conduzem os observadores a um estado meditativo em que só existe o barulho das águas e os camalotes, sem cessar, descendo o rio. Onde nascem e onde morrem, se irão emaranhar-se na galharia submersa ou juntar-se às macegas nas margens do rio, ou se chegarão ao seu destino, e se têm destino, quem é que sabe? Até onde encontrarão as boas condições e, chegando ao mar, se terão cumprido sua missão de sobreviver, se proliferar e dispersar, e se têm essa missão, é um mistério profundo. Mistério dos camalotes e do rio. O próprio rio não pára, nem à noite. Corre para ninguém ver, para platéia alguma. Outros bichos e plantas o visitam à noite, mas ainda que nenhum fosse, ainda que o mundo se tornasse um deserto de criaturas, o rio continuaria a correr, para ninguém.