Abelhazzz!


O Samuel, Sam, trabalhava com abelhas. As jatis e as trigonas nativas, boazinhas, que se pode até pegar com os dedos, ou colher o mel na colméia com as mãos nuas, tadinhas. E as africanizadas agressivas, que deram fama às outras abelhas de serem perigosas. Antes, eram as nativas que polinizavam as flores pantaneiras, que pegavam o pólen, o açúcar e os óleos, e fertilizavam as plantas para produzirem sementes. Depois, chegaram as africanizadas, que fazem muito mel e, por serem agressivas, devem competir com as nativas. O Sam queria estudar isso, e mais: queria saber de quais flores é feito o mel pantaneiro. Igual tem mel de laranjeira, de assa-peixe e de eucalipto, o mel pantaneiro pode ser do tarumã de flores roxas, ou do manduvi, que os tucanos tanto gostam, ou das plantas aquáticas. Para descobrir, ele fez uma gambiarra muito da engenhosa, que tinha de pregar na entrada da colméia das Apis mellifera, que são as próprias africanizadas. Bão.

O Sam pediu ajuda ao Roberto para instalar sua gambiarra na entrada de uma colméia grande, que encontrou no ôco de uma árvore. O Roberto criava abelhas e morava quase da ponte do rio Miranda, perto da Base. O Sam era o pesquisador. E eu, a motorista, que levei meu Palinho para moer na Estrada Parque, na falta de outro veículo para realizarmos nosso trabalho. Eu até ofereci a direção ao Sam, mas ele perguntou se eu não queria ir. Eu queria, e perguntei ao Roberto se não era perigoso. Afinal, os dois iriam lacrados como astronautas nos paramentos que compõem a roupa dos apicultores - o macacão, o capus com a tela no rosto, as luvas e as botas. Ele disse que era tranquilo, que eu podia ir. Que eu só precisava fazer o ele mandasse. E fomos. Bão.

Tinha que ser de noite, porque as abelhas se orientam muito pela visão e no escuro ficam mais quietas. Então, às 20 horas saímos eu e o Sam da Base, apanhamos o Roberto na casa dele, e eu dirigi até a Fazenda São Bento. Num capão muito lá no fundo é que ficava a árvore da colméia. Estacionei no pasto á beira da estrada de chão, deixando os faróis acesos para que os dois se vestissem de apicultores. Sentimos a noite ao sair do carro. Estava fresca, em comparação com o bafo do dia. Muitos grilos, pios desconhecidos. Mariposas e besouros iam de encontro com os faróis e a superfície brilhante do carro. Próximo da gente, um animal soltou um longo urro modulado de agonia. Um grito que não se parecia com nada que eu havia escutado até então. Seria naquela noite, finalmente, meu encontro com a pintada? "Tem boi aí", disse o Roberto. "Isso é boi?", eu perguntei, "Que esquisito". E ele comentou, com um riso de canto de boca: "Um touro". Tudo bem, eu faria sem problema o papel da medrosa, porque preferia a precaução que a inconseqüência. O grunhido estranho ia se aproximando da gente, cada vez mais alto e mais dolorido. Uma coisa que assustava mesmo. Eu tinha cogitado ficar dentro do carro de faróis apagados enquanto os dois trabalhavam, esperando algum animal noturno aparecer. Quem sabe um lobinho, uma jaguatirica, a onça? Mas aqueles grunhidos angustiavam a pessoa. Quantas histórias conheço de gente que foi pisoteada e esfolada por algum touro contra uma cerca de arame farpado? Eu não ficaria no carro, estava decidido. Além disso, o Roberto disse que era seguro eu entrar no capão. Tá bom.

Entramos. Eu não tinha lanterna. Os dois portavam as suas e eu os seguia, tentando aproveitar migalhas de luz para ver por onde andava, evitando cabecear árvores ou pisar em buracos, cobras ou escorpiões que se escondessem no denso folhiço. Mas os de lanternas andavam rápido, seguros, enquanto eu quase corria, cegamente, tentando alcançá-los. Entreguei, faria o quê? Ficar para trás é que não. Daí chegamos à árvore da colméia. Tinhamos que ser silenciosos, para não irritar as abelhas. "É essa aí", sussurrou o Sam. "A oropa é grande, rapaz!". O zumbido era ainda mais forte no silêncio da noite. O plano de ação: o Sam seguraria o invento sobre o ôco, enquanto o Roberto passaria a silver tape abraçando a árvore, para fixar a placa. De vez em quando, o Roberto esfumaçaria o ambiente com aquela geringonça de esfumaçar, que parece um regador com forno e fole. E eu ficaria quieta, no escuro. Agaixada. Não podia fazer barulho, nem me mexer. "Fique muito quieta, senão, as abelhas te acham ". Me colocaram num meio de árvores onde eu podia vê-los por entre os troncos.

Nos 30 minutos que fiquei agaixada, olhava para a escuridão, para o vagalumes que voavam perto, escutava os grilos. Testava os olhos, buscando divisar alguma forma na escuridão. De vez em quando, conferia se algum animal me espreitava atrás. Imaginava uma cidade de olhos brilhantes me olhando na noite. Reparei que o touro havia se calado. Via o Sam e o Roberto como dois mandigueiros de roupas estranhas, em meio à fumaça, as lanternas se acendendo e apagando, num ritual secreto no meio do capão. Pensei na possibilidade das abelhas se dispersarem e de termos que sair todos correndo, eu sem lanterna, trombando em troncos, caindo em buracos, me enredando na macega de cipós e espinheiros, sendo picada por abelhas, me contorcendo no chão. Na hora do medo, nem pensei que as abelhas não poderiam picar meus amigos através das roupas de apicultor, nem que eles poderiam me ajudar.

Por fim, tudo correu bem. O experimento foi montado, ninguém se machucou. Só as abelhas não ficaram muito satisfeitas. E voltamos para casa.

No dia seguinte, deveriam desmontar o experimento para libertar os insetos e colher o pólen. Emprestei o carro para o Sam, e o Carlos foi ajudá-lo, mais o Roberto. Eu fiquei na Base cuidando de outras coisas. O Carlito não quis entrar no capão, ficou esperando os dois no carro. Mais tarde ele me disse que, numa dada altura, ouviu o Samuel gritar: "Carlos, entra no carro!". As abelhas se dispersaram e as roupas dos apicultores ficaram negras, cobertas de ferrões. Poderia ter sido comigo, no dia anterior. É Deus quem protege mesmo.

Comentários

Anônimo disse…
Anita!!!
Estou aqui!
E que aventura essa a sua hein?!
Não sei se teria a mesma coragem...na verdade não sei se a curiosidade superaria a falta de coragem numa situação dessas!
Adorei a riqueza de detalhes do seu texto!
Muito, muito bom!!
Morro de saudades do Panatanal! A minha memória soobre os capões, a base e todo o curso de campo é revivido nesses textículos!! ehehe

Mil beijocas saudosas!
E quem tomou picada de abelha nos capões foi você, tsc tsc tsc.
Beijos,
Aninha
Anônimo disse…
Me lembro como se fosse agora, quantas aventuras na imensidão do bafo quente pantaneiro. Tenho a saudade das companhias, debaixo do sol escaldante ou na escada do Geraldo, da gasolina servida grátis do Passo do Lontra, dos mineiros.
Agora acompanho e traduzo no papel a incoparável tarefa das abelhas.
Ananevshky sinto muita saudades de vc.
Um gde beijo

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